Como já devem ter lido, o João, filho do Tordo, veio defender o pai das palavras menos bonitas que andaram a dizer do senhor. E como devem saber, o Fernando, pai do Tordo, decidiu no alto dos seus 65 anos emigrar para o Brasil, mais concretamente para o Recife, onde conta começar uma nova vida. E eu, que nada tenho contra quem emigra nem contra quem defenda o seu pai, também me vi na obrigação (vá, vontade) de escrever para o meu pai.
Sabes, João (isto agora sou eu a fingir que me dirijo a ele, ok? Como se o João fosse ler isto), o meu pai é um bocadinho mais novo que o teu, faz agora em Março 59 anos e muito provavelmente, no seu tempo devido, não terá uma reforma muito superior a 200 euros. Começou a trabalhar com 14 anos numa cidade que distava da aldeia onde vivia uns bons 30 quilómetros. Hoje a estrada nacional até tem bom asfalto e o Engº Sócrates deixou-nos uma espectacular auto-estrada que nos leva num tirinho ao Porto. Mas antes, quando o meu pai era miúdo, a estrada que havia era em terra batida. A única camioneta (há quem diga autocarro, mas eu gosto de lhe chamar camioneta porque tem mais a ver com a história e a altura em que se passa) partia de outra aldeia, motivo pelo qual ele tinha de andar todos os dias 10 quilómetros a pé. Coisa pouca.
Assim como o seu pai, também o meu dedicou a vida à música. Só não subiu aos palcos, nem lançou cd’s ou fez concertos pelo país. Nem tão pouco foi à televisão ou é conhecido como o seu. Mas dedicou a sua vida à música. Nem imagina como ele toca bem harmónica. De ouvido. Nunca frequentou qualquer aula de música nem tão pouco sabe ler pautas. Mas toca harmónica como ninguém. E os discos que ele ouviu? Ui, tantos. E andam lá por casa alguns do seu pai. Que o meu pai adora a música da tourada. E eu também, confesso. Não a tourada, mas a música.
Agora se ele tivesse sido artista, se tivesse vendido os cd’s que o seu pai vendeu e dado espetáculos como o seu deu, talvez não precisasse de fazer “biscates” durante todo o dia de sábado. E mais o domingo de manhã, que serve para ajudar uns amigos. E só não é o domingo à tarde porque a minha mãe lhe acena que não com a cabeça numa tentativa de ele perceber que domingo à tarde é dia de ir a casa da mãe. Como boa filha que é e seguidora dos rituais familiares, acha que o domingo à tarde é dia de descanso. Mas não falemos da minha mãe, que isso pode ficar para outra carta. Foquemo-nos no meu pai.
Numa coisa eu concordo com o João e deixo aqui o meu apoio: ninguém tem o direito de dizer mal, de chamar palavrões duros, de mandar as pessoas que amamos para outras partes que às vezes nem deste mundo são. Ninguém mesmo. Mas não ligue aos comentários do Facebook ou dos jornais. Eles valem o que valem, ou seja, nada!
Mas agora vem a parte em que se calhar nos vamos desentender e, mesmo eu não o conhecendo nem nunca ter falado consigo, vamos ficar sem falar um com o outro. Mas eu vou arriscar.
Pelo que sei, o seu pai, assim como o meu, ainda não está reformado pois não? Pois. Por isso não entendo a indignação de alguém reclamar receber 200 euros de reforma quando ainda nem reformado está. Adiante. Ele vai para o Recife (nunca lá fui, mas dizem que é lindo, com muito sol e calor e bons camarões na praia) e vai viver de quê? Essa parte não refere na sua carta. Vai viver de concertos em bares? Em Portugal também podia. As coisas em Portugal não estão fáceis, é verdade, mas tem visto as imagens do Brasil?
O meu pai nunca viajou. Tirando aqueles anos em que íamos de camioneta (muito andou ele de camioneta) a Vigo buscar bacalhau e caramelos. Ou então aquela vez que o levei a Barcelona e era ver o seu espanto, a sua alegria.
O meu pai trabalha desde os 14 anos, de segunda a domingo. Quando se reformar não terá uma grande reforma. Contudo, acha que o meu pai se queixa, ou que vai emigrar com a harmónica às costas, ou que acha que o seu país lhe está a virar as costas? Não. E eu, como filha, compreendo quando diz que está triste por ver o seu pai partir. Mas, espero que também compreenda o meu lado quando digo que fico feliz pelo meu ficar.
João, eu não tenho nada contra si e até tenho um livro seu lá em casa, que muito prazer me deu a ler. Mas acho que o seu pai, pessoa conhecida por todos nós, devia ter ido para o Recife sem dar muito alarido. É isso que acho. E a sua carta veio criar ainda mais alarido a este mundo blogosferiano (inventei agora).
Ontem, ao deitar-me, imaginei o meu pai dentro do avião, quando fomos a Barcelona. Bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Mas ansioso por voltar para casa, para o país que dizem estar mal, mas que para ele está melhor do que nunca. Eu sei que não está. Mas deixo-o sonhar.