quarta-feira, 5 de novembro de 2014

No princípio era o Verbo e um terreno cheio de mato

 
 
No princípio era o Verbo e um terreno cheio de mato. Terreno que já tinha feito parte de um campo de cultivo, campo de cultivo que tinha sido comprado na década de 60 por uns poucos contos de réis, contos de réis que tinham sido ganhos na Venezuela, Venezuela que tinha sido o principal destino de grupos de homens daquela terra que ambicionavam uma vida melhor, grupos de homens aos quais se tinha juntado o meu avô.
Depois vieram os anos 80 e o tempo das vacas que sendo ainda magras nos parecem agora gordas. E a agricultura de subsistência deixou de estar na moda. Os campos que inundavam os arredores das grandes cidades pareciam pequenos para acolher todos os que fugiam do interior. Era preciso arrancar o milho para dar espaço às marcações dos topógrafos, deitar abaixo as vinhas para assentar os paralelos, desviar os ribeiros para construir os ramais da água, e as sarjetas, e os colectores dos resíduos da civilização. O campo de cultivo comprado pelo meu avô com os contos de réis ganhos a troco do suor deixado no solo de Caracas não resistiu ao espírito do tempo. Em breve estaria transformado, primeiro num projecto, depois num alvará de loteamento e, finalmente, numa urbanização com uma dúzia de lotes, alguns deles com destino marcado desde a primeira hora. Um constituiria o pagamento do arquitecto, outro o pagamento do empreiteiro; economia de troca directa no Portugal da CEE.
Ao longo dos anos venderam-se mais alguns, ficando sempre de reserva o espólio da herança. O meu avô era homem avisado, e as famílias felizes só são todas iguais até à altura das partilhas. Dos avós até aos netos, o título de propriedade do terreno da fotografia transferiu-se mais rapidamente do que seria desejável. E também, olhando para as estatísticas da esperança de vida, mais rapidamente do que seria expectável. Aguardaria de bom grado mais umas décadas pela invejada condição de “proprietário”, mas ainda não somos nós, seres humanos, os decisores destas matérias.
A vida num T2 é bastante prazenteira para um casal sem filhos. Não é demasiadamente pequeno para o sonho de um homem – ter um escritório onde possa estar sossegado – , nem demasiadamente grande para o sonho de uma mulher – ter a casa arrumada. Com crianças, tudo muda. Se for apenas uma, sacrifica-se o sonho do homem e o sonho da mulher e o assunto está resolvido. Se forem duas, sacrifica-se tudo, o assunto fica na mesma por resolver, mas tudo se consegue com “o amor”. Se forem três, cortam-se os pulsos. Mas depois voltam-se a coser, porque nas “ilhas” do Porto vivem mais pessoas em espaços mais pequenos. Adiante. Eu e a minha mulher, a minha mulher e eu, e vice-versa, resolvemos colocar o carro à frente dos bois e procurar casas maiores antes de nos dedicarmos à santa tarefa da procriação. Aliás, o carro ficou tão à frente dos animais que o puxam, que decidimos procurar casas antes até de perder 5 minutos no famoso exercício especulativo “quantos filhos queremos ter”! Como era de esperar, em pouco tempo estávamos numa encruzilhada: um T4 novo é muito caro, um T3 pode não chegar; se comprarmos um T4 usado e depois só tivermos um filho, vamos ficar arrependidos de não ter comprado antes um T3 novo; se comprarmos um T3 novo e depois tivermos dois filhos, vamos ficar arrependidos de não ter comprado antes um T4 usado; se comprarmos qualquer um dos dois e acabarmos por ter 3 filhos, lá se vai o escritório e os pulsos do homem. E foi assim, no meio destes dilemas, que surgiu a ideia de construir uma casa no terreno que já tinha feito parte de um campo de cultivo, e que tinha sido comprado por uns contos de réis, ganhos na Venezuela, pelo avô, em troca do suor…, etc., etc. É dessa aventura que vos vou falar nos próximos textos. Que serão publicados semanalmente, ou não. Que estarão acompanhados por fotografias, ou não. Que escreverei até a casa ficar pronta, ou não. E agora que vos deixei descansados no conforto das grandes certezas, despeço-me com amizade e com duas paletes de cimento-cola.
 
Andorinho               

2 comentários:

Cristiana disse...

Olá! embora já tenha descoberto este blog há algum tempo, só hoje comento... para desejar tudo de bom nessa aventura de construir casa (eu e o meu mais que tudo não tivemos coragem...), gosto muito do vosso registo e estou cimento-colada na vossa aventura...se a publicarem :) Ah! E parabéns aos futuros papás - provavelmente a aventura mais desafiadora e maravilhosa de todas!

andorinha disse...

Obrigada, Simple Happy!
Sim, o objectivo é mesmo esse, actualizar sempre esta nossa aventura da casa.
Obrigada por passares aqui por estas bandas. Prometemos textos em breve ;)