Pegou delicadamente no cigarro com aqueles dedos curtos e escuros
de quem fica morena com um pequeno raio de sol. Colou-se-lhe aos lábios
discretamente pintados de vermelho aquela base castanha clara, aquele início de
cigarro que fica sempre para contar as suas histórias, para ser atirado ao chão
e calcado naquele alpendre com chão de pedra, ou para ser deixado no cinzeiro
de cristal pousado no mesmo sítio há anos. Uma chama apareceu, gasta pelo penúltimo
fósforo daquela caixa de papel comprada em Viena. E logo voltou a desapareceu
sem dar tempo para aquecer a sala. Ou os dedos.
A chuva inundava os vidros da sala e ouvia-se de vez em
quando uma porta a bater. O gato pousou-se-lhe no colo, largou pêlos pretos nas
pernas nuas e frias de quem se sentia bem em andar apenas de robe de seda pela
casa.
Sentada no cadeirão velho de tecido escocês, cruzou a perna
esquerda sobre a direita e fixou o olhar nas gotas de água da janela. Lentamente,
fumou. Foi fumando. Sem pressas, sem pensar em nada, sem sentir o frio que
descia por aquela escadaria de madeira escura. Passou a mão nos frágeis e escuros cabelos
desalinhados de quem acordou e nem se viu ao espelho, e afastou-o, um
pouco apenas. Lentamente, fumou. Foi fumando. Misturavam-se os sons do ronronar
do gato, do vento, da tília do jardim que parecia querer fugir, do silêncio da
sala e do cigarro a acabar-se ou a começar-se.
Ao fundo, num canto da sala dedicado à sétima arte,
conviviam discos em vinil com cd’s, cassetes de vídeo com dvd’s. Levantou-se, o
gato saltou para o parapeito da janela, apertou um pouco o robe, segurou apenas
com os lábios o cigarro e, com as mãos, escolheu, puxou e colocou um disco no
rádio antigo comprado numa feira que não se lembra onde. Riscado, velho,
combinava com o soalho, e o som entrava em cada buraco daquela tábua. Lentamente,
fumou. Foi fumando. Voltou a sentar-se e a sentir a chuva.
O cigarro acabou, e com ele a chuva e a música. Viu um raio
de sol a entrar naquele vidro banhado em água e abriu a porta. Descalça, quis
sentir a chuva no chão de pedra do alpendre. E assim ficou, aquecida pelo sol e
pela felicidade que lhe inundava a alma.
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