sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sexta-feira é dia de prosa e poesia #1

Pegou delicadamente no cigarro com aqueles dedos curtos e escuros de quem fica morena com um pequeno raio de sol. Colou-se-lhe aos lábios discretamente pintados de vermelho aquela base castanha clara, aquele início de cigarro que fica sempre para contar as suas histórias, para ser atirado ao chão e calcado naquele alpendre com chão de pedra, ou para ser deixado no cinzeiro de cristal pousado no mesmo sítio há anos. Uma chama apareceu, gasta pelo penúltimo fósforo daquela caixa de papel comprada em Viena. E logo voltou a desapareceu sem dar tempo para aquecer a sala. Ou os dedos.
A chuva inundava os vidros da sala e ouvia-se de vez em quando uma porta a bater. O gato pousou-se-lhe no colo, largou pêlos pretos nas pernas nuas e frias de quem se sentia bem em andar apenas de robe de seda pela casa.
Sentada no cadeirão velho de tecido escocês, cruzou a perna esquerda sobre a direita e fixou o olhar nas gotas de água da janela. Lentamente, fumou. Foi fumando. Sem pressas, sem pensar em nada, sem sentir o frio que descia por aquela escadaria de madeira escura. Passou a mão nos frágeis e escuros cabelos desalinhados de quem acordou e nem se viu ao espelho, e afastou-o, um pouco apenas. Lentamente, fumou. Foi fumando. Misturavam-se os sons do ronronar do gato, do vento, da tília do jardim que parecia querer fugir, do silêncio da sala e do cigarro a acabar-se ou a começar-se.
Ao fundo, num canto da sala dedicado à sétima arte, conviviam discos em vinil com cd’s, cassetes de vídeo com dvd’s. Levantou-se, o gato saltou para o parapeito da janela, apertou um pouco o robe, segurou apenas com os lábios o cigarro e, com as mãos, escolheu, puxou e colocou um disco no rádio antigo comprado numa feira que não se lembra onde. Riscado, velho, combinava com o soalho, e o som entrava em cada buraco daquela tábua. Lentamente, fumou. Foi fumando. Voltou a sentar-se e a sentir a chuva.
O cigarro acabou, e com ele a chuva e a música. Viu um raio de sol a entrar naquele vidro banhado em água e abriu a porta. Descalça, quis sentir a chuva no chão de pedra do alpendre. E assim ficou, aquecida pelo sol e pela felicidade que lhe inundava a alma.

 

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